o Zeca
na Galiza

 (umha história em reconstruçom)

Na capital da Galiza, por trás do auditório que leva o nome do país, está o Parque José Afonso. Nom é por acaso. Diz a memória coletiva que foi em Compostela, naquele concerto multitudinário de 10 de maio de 1972 no Burgo das Naçons, que foi interpretada pola primeira vez a depois famosíssima Grândola, vila morena — a cançom que o MFA usou, improvisadamente, como senha para confirmar a sua Revoluçom em Abril de 1974.

A estreia, com a guarda civil espanhola às portas do auditório e a censura a querer controlá-lo tudo desde dentro, bem poderia ter sido em Lugo o dia antes, ou em Ourense o anterior, pois foi por aquela cidade que começou a primeira gira do Zeca no país. O palco tanto fai, o que interessa é que em 1972 — o ano que a Galiza explodiu definitivamente em conflitos operários contra o franquismo e polas liberdades sociais e nacionais — andava polo país o Zeca Afonso, quase desconhecido para o grande público, da mao de Benedito Garcia Vilar, o fundador daquela outra máquina de cantar a dissidência: Voces Ceibes.

Benedito com o Zeca Afonso num de tantos concertos que partilhárom

Nem a pressom da ditadura portuguesa contra um dos seus cantores mais populares, com a polícia política a proibir concertos e recitais e mesmo a deter o músico em várias ocasions, nem a equivalente pressom do fascismo espanhol contra a música de protesto galega, com resultados semelhantes, puideram impedir que a música de intervençom se reconhecesse polo mundo adiante. Foi em Paris, por exemplo, onde Bibiano iria apresentar o Zeca — que estava lá a gravar o Cantigas do Maio — e o Luís Cília ao Xico de Carinho em 1971. Por isso, a gira galega do Zeca de 1972 representou muito mais do que «um cantor a cantar cançons».

«Festival dos Povos Ibéricos», celebrado na Corunha em Agosto de 1978. De esquerda a direita: Joxean e Jesus Artze (País Basco), José Afonso (Portugal), Marina Rossell (Catalunha),
Xico de Carinho (Galiza), Bibiano (Galiza) e Enrique Morente (Andaluzia).

Para a Galiza, significou uma fenda no isolamento imposto ao país e no alheamento fabricado em relaçom a Portugal em que o Estado espanhol tinha investido historicamente tantos esforços, e que em parte ainda continua hoje para uma maioria. Para o José Afonso, significou provavelmente o estabelecimento de um dos vértices do que Paulo Esperança iria denominar o «triângulo mágico do Zeca»: África-Portugal-Galiza. E nom só. Também o reconhecimento mútuo, que o próprio José Afonso explicitou em duas declaraçons: naquela de «talvez ninguém me entendesse como na Galiza», e naquela outra de «Há umha grande confusom em Portugal sobre a Galiza. Estou farto de explicar por todo o lado que a Galiza nom é Espanha».

Um dos momentos finais do histórico concerto-homenagem de Vigo sob o título «Galiza a José Afonso». Na imagem, entre outras, Xico de Carinho, Carlos Salomé, José Mário Branco, Amália Muge, Vitorino e Tereixa Novo

A gira de 1972, que tivo umha importância certa, ainda se iria multiplicar a partir daí. Em 1977, o próprio Xico de Carinho iria trazer de novo o Zeca para participar no Festival dos Povos Ibéricos da Corunha, aonde havia voltar em 1984, com extensom em Cedeira. Em 1981, José Afonso cantaria no Auditório de Castrelos de Vigo, onde só quatro anos mais tarde, Benedito e outros músicos galegos iriam organizar talvez a maior homenagem do mundo à figura do seu amigo: em 31 de agosto de 1985, quase vinte mil pessoas ocuparam de novo aquele auditório durante mais de doze horas para acompanhar decenas de músicos, poetas, escritores, etc. num tributo a um Zeca já gravemente enfermo.

De esquerda a direita, Antón Mascato, Xico de Carinho, José Afonso, Nanucha, Zélia, Henrique Marques, Xan Carballa e Begoña Moa. Azeitão, Maio de 1985, na apresentaçom do projeto de Vigo ao Zeca. Foto de Gustavo Luca de Tena.
Extracto do concerto de Compostela de 1972, onde é interpretado o Grândola conjuntamente com o público.

O reconhecimento da situaçom política nom foi o único que levou da Galiza José Afonso, que estendeu por aqui os mergulhos nas raízes musicais populares na base dos seus trabalhos musicais em Portugal. De novo a memória colectiva diz que a canção Rio Largo de Profundis, que começa «A garrafa vazia de Manuel Maria…» faz referência ao nosso Manuel Maria. Há quem diga que por causa de umha garrafa de licor que o poeta chairego teria dado em presente aos músicos na viagem de Ourense para Lugo daquela gira, ao passar por Monforte de Lemos; há quem diga que a garrafa teria-lha dado Manuel Maria ao jornalista português José Viale Moutinho, amigo pola sua vez do próprio José Afonso, com quem a teria terminado.

O Manuel Maria da cançom provavelmente remeta, porém, para o poeta setubalense Manuel Maria Barbosa du Bocage, a dizer de Arturo Reguera, mas a relaçom da música do Zeca com o nosso país nom se limita a essa cançom. «Achega-te a mim, Maruxa», com texto tirado do cancioeiro limiao, é mais umha prova. Diz o Júlio Pereira que a música dessa cançom a ideou o Zeca em Vigo em 1978. Em qualquer caso os elementos rastejáveis estám também noutros pontos da sua extensa produçom, do mesmo modo que o pouso do Zeca se encontra em tantos artistas galegos, do referido Benedito a Bibiano, de Xico de Carinho a Uxía Senlle, de Luar na Lubre a Faltriqueira, de Candieira a Nao.

A morte de José Afonso em 1987, por último, tampouco derrubou as pontes sobre o Minho e através da raia seca, nem as ruinou. As homenagens ao Zeca continuaram periodicamente no nosso país. Os Cantos na Maré, o Ponte… nas Ondas!, e agora — desejamos — os trabalhos da AJA-Galiza, som herdeiras dessa universalidade que o Zeca semeou.

Por enquanto, o que faz falta continua a ser agitar a malta.

o Zeca
na Galiza

(umha história em reconstruçom)

 Benedito com o Zeca Afonso num de tantos concertos que partilhárom

Na capital da Galiza, por trás do auditório que leva o nome do país, está o Parque José Afonso. Nom é por acaso. Diz a memória coletiva que foi em Compostela, naquele concerto multitudinário de 10 de maio de 1972 no Burgo das Naçons, que foi interpretada pola primeira vez a depois famosíssima Grândola, vila morena — a cançom que o MFA usou, improvisadamente, como senha para confirmar a sua Revoluçom em Abril de 1974.

A estreia, com a guarda civil espanhola às portas do auditório e a censura a querer controlá-lo tudo desde dentro, bem poderia ter sido em Lugo o dia antes, ou em Ourense o anterior, pois foi por aquela cidade que começou a primeira gira do Zeca no país. O palco tanto fai, o que interessa é que em 1972 — o ano que a Galiza explodiu definitivamente em conflitos operários contra o franquismo e polas liberdades sociais e nacionais — andava polo país o Zeca Afonso, quase desconhecido para o grande público, da mao de Benedito Garcia Vilar, o fundador daquela outra máquina de cantar a dissidência: Voces Ceibes.

«Festival dos Povos Ibéricos», celebrado na Corunha em Agosto de 1978. De esquerda a direita: Joxean e Jesus Artze (País Basco), José Afonso (Portugal), Marina Rossell (Catalunha),
Xico de Carinho (Galiza), Bibiano (Galiza) e Enrique Morente (Andaluzia).

Nem a pressom da ditadura portuguesa contra um dos seus cantores mais populares, com a polícia política a proibir concertos e recitais e mesmo a deter o músico em várias ocasions, nem a equivalente pressom do fascismo espanhol contra a música de protesto galega, com resultados semelhantes, puideram impedir que a música de intervençom se reconhecesse polo mundo adiante. Foi em Paris, por exemplo, onde Bibiano iria apresentar o Zeca — que estava lá a gravar o Cantigas do Maio — e o Luís Cília ao Xico de Carinho em 1971. Por isso, a gira galega do Zeca de 1972 representou muito mais do que «um cantor a cantar cançons».

Um dos momentos finais do histórico concerto-homenagem de Vigo sob o título «Galiza a José Afonso». Na imagem, entre outras, Xico de Carinho, Carlos Salomé, José Mário Branco, Amália Muge, Vitorino e Tereixa Novo

Para a Galiza, significou uma fenda no isolamento imposto ao país e no alheamento fabricado em relaçom a Portugal em que o Estado espanhol tinha investido historicamente tantos esforços, e que em parte ainda continua hoje para uma maioria. Para o José Afonso, significou provavelmente o estabelecimento de um dos vértices do que Paulo Esperança iria denominar o «triângulo mágico do Zeca»: África-Portugal-Galiza. E nom só. Também o reconhecimento mútuo, que o próprio José Afonso explicitou em duas declaraçons: naquela de «talvez ninguém me entendesse como na Galiza», e naquela outra de «Há umha grande confusom em Portugal sobre a Galiza. Estou farto de explicar por todo o lado que a Galiza nom é Espanha».

De esquerda a direita, Antón Mascato, Xico de Carinho, José Afonso, Nanucha, Zélia, Henrique Marques, Xan Carballa e Begoña Moa. Azeitão, Maio de 1985, na apresentaçom do projeto de Vigo ao Zeca. Foto de Gustavo Luca de Tena.

A gira de 1972, que tivo umha importância certa, ainda se iria multiplicar a partir daí. Em 1977, o próprio Xico de Carinho iria trazer de novo o Zeca para participar no Festival dos Povos Ibéricos da Corunha, aonde havia voltar em 1984, com extensom em Cedeira. Em 1981, José Afonso cantaria no Auditório de Castrelos de Vigo, onde só quatro anos mais tarde, Benedito e outros músicos galegos iriam organizar talvez a maior homenagem do mundo à figura do seu amigo: em 31 de agosto de 1985, quase vinte mil pessoas ocuparam de novo aquele auditório durante mais de doze horas para acompanhar decenas de músicos, poetas, escritores, etc. num tributo a um Zeca já gravemente enfermo.

O reconhecimento da situaçom política nom foi o único que levou da Galiza José Afonso, que estendeu por aqui os mergulhos nas raízes musicais populares na base dos seus trabalhos musicais em Portugal. De novo a memória colectiva diz que a canção Rio Largo de Profundis, que começa «A garrafa vazia de Manuel Maria…» faz referência ao nosso Manuel Maria. Há quem diga que por causa de umha garrafa de licor que o poeta chairego teria dado em presente aos músicos na viagem de Ourense para Lugo daquela gira, ao passar por Monforte de Lemos; há quem diga que a garrafa teria-lha dado Manuel Maria ao jornalista português José Viale Moutinho, amigo pola sua vez do próprio José Afonso, com quem a teria terminado.

O Manuel Maria da cançom provavelmente remeta, porém, para o poeta setubalense Manuel Maria Barbosa du Bocage, a dizer de Arturo Reguera, mas a relaçom da música do Zeca com o nosso país nom se limita a essa cançom. «Achega-te a mim, Maruxa», com texto tirado do cancioeiro limiao, é mais umha prova. Diz o Júlio Pereira que a música dessa cançom a ideou o Zeca em Vigo em 1978. Em qualquer caso os elementos rastejáveis estám também noutros pontos da sua extensa produçom, do mesmo modo que o pouso do Zeca se encontra em tantos artistas galegos, do referido Benedito a Bibiano, de Xico de Carinho a Uxía Senlle, de Luar na Lubre a Faltriqueira, de Candieira a Nao.

A morte de José Afonso em 1987, por último, tampouco derrubou as pontes sobre o Minho e através da raia seca, nem as ruinou. As homenagens ao Zeca continuaram periodicamente no nosso país. Os Cantos na Maré, o Ponte… nas Ondas!, e agora — desejamos — os trabalhos da AJA-Galiza, som herdeiras dessa universalidade que o Zeca semeou.

Por enquanto, o que faz falta continua a ser agitar a malta.